Vayerá
Vayerá (Gênesis 18:1-22:24)
Edgard Leite
Quando estava convalescendo da circuncisão, “no maior calor do dia”, Abraão “levantando os olhos”, “viu três homens de pé, perto dele”, “e se prostrou por terra” (Gn 19:1-2).
Essa aparição inicia outra sequência impressionante de acontecimentos na jornada interior de Abraão.
Um antigo midrash diz que os anjos questionaram Deus sobre se valeria à pena, ou não, visitar Abraão, quando este ainda estava se recuperando da circuncisão.
“O que é o homem, para que se preocupe com ele? E o filho do homem, para que o visite? E deseja Deus estar num lugar de impureza, um lugar de sangue e sujeira?”
Ao que respondeu Deus: “Assim Eu falei. O sabor do sangue humano é mais doce para mim que a mirra e o incenso” (Aggadat Bereshit: 19).
Pergunta parecida foi feita pelo salmista: "o que é o homem, para que o conheças, e o filho do homem, para que o estimes?" E responde Davi, inspirado, à sua própria pergunta: "o homem é semelhante à vaidade, os seus dias são como a sombra que passa. Abaixa, ó Senhor , os teus céus, e desce; toca os montes e fumegarão" (Sl 144:3-5).
“O que é o homem?” perguntam os anjos. E Deus responde que o sangue dos mortais é mais doce que a mirra e o incenso, ao seu sentir. O sangue é a alma, o seu sopro divino. No qual se reconhece.
O amor de Deus por Abraão é essencial. O amor do infinito pelo finito. Ou pela harmonia que pode ser estabelecida entre as duas dimensões no âmbito da consciência humana.
Em Abraão ele encontra o que de melhor existe no humano. O sentimento de justiça e o amor, à sua imagem e semelhança. A capacidade do finito em reconhecer e acolher uma razão eterna. O inanimado recebendo o Espírito. “Insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2:7).
Quando os anjos se levantaram e se puseram a caminho de Sodoma e Gomorra, Abraão os seguiu.
E, como Deus sabia, existia em Abraão esse sentimento de amor ao divino no humano. É isto que o leva a preocupar-se com o destino da cidade, ou melhor, das pessoas que lá habitam.
O Patriarca percebe o que vai acontecer. Pois sabia bem o que acontecia em Sodoma.
Tenta dissuadir Deus da destruição iminente. Porque os justos pagariam pelos pecadores? “Não fará justiça o juiz de toda a terra?” (Gn 18:25).
Inicia-se então um diálogo singular entre Abraão e Deus, no qual o Patriarca tenta encontrar um número mínimo de justos que permitiria poupar os pecadores.
Afinal, chega-se ao número de dez. Compromete-se assim, Deus: “Não destruirei, por causa dos dez” (Gn 18:32).
Assustado com o diálogo, tão inacreditável, considerando que é um diálogo entre absolutos desiguais, Abraão como que retorna à pergunta dos anjos, no midrash: “O que é o homem”?
“Eu me atrevo a falar ao meu Senhor, eu que sou poeira e cinza” (Gn 18:27).
“Poeira e cinza”, diz Abraão, porque é o Espírito que torna o homem um ser humano. Sem Deus, ele é apenas “poeira e cinza”. Sem a esperança do diálogo, da salvação, do contato redentor com Deus, o homem nada é. Por isso ele se atreve. Por ser humano.
Atentando a isso, a essa realidade tão essencial e fundadora, os anjos se dirigem a Sodoma e Gomorra.
Ali estava, como todos sabiam, a antítese do humano.
Abraão possuía essa infinita humildade, na qual encontrava a infinitude de Deus.
Os habitantes de Sodoma, ao contrário, eram alheios à sua natureza humana, ao fato de serem “poeira e cinza” e de só serem humanos por obra de Deus. Achavam que eram o princípio e fim de toda realidade.
Deleitavam-se com a “poeira e a cinza” achando que estas eram o objetivo maior, a razão de ser das coisas. Numa inversão do que é o mundo, negavam Deus e a realidade última da vida: achavam que o nada era tudo.
Ló, sobrinho de Abraão, recebe os anjos “e prostrou-se com a face por terra” (Gn 19:1).
Mas a multidão de habitantes da cidade se atormenta com aquela presença perturbadora e sagrada. Que mostrava que eram apenas “poeira e cinza”.
Ao contrário de Abraão, que se aceita e se submete, eles querem submeter o divino, tornar secundária a sua própria fonte. Se sentem maiores e melhores que Deus.
Exigem os anjos a Ló: “onde estão os homens que vieram para tua casa esta noite? Traze-os para que os conheçamos” (Gn 19:5).
Não há muito o que fazer, diante dessa desesperançada e alheia existência. Deus retira a família de Ló da cidade, de madrugada. Não chegavam a dez.
“Deus”, então, “fez chover, sobre Sodoma e Gomorra, enxofre e fogo, e destruiu essas cidades e toda a Planície, com todos os habitantes da cidade e a vegetação do solo” (Gn 19:23)
Sabendo disso, Abraão levantou-se de madrugada.
“Abraão foi ao lugar onde estivera na presença de Deus e olhou para Sodoma, para Gomorra e para toda a Planície e eis que viu a fumaça subir da terra, como a fumaça de uma fornalha” (Gn 19:27)
Nessa meditação ao nascer do sol, as perguntas dos anjos a Deus, no midrash, são lentamente respondidas:
O que é o homem? Poeira e cinza, ou, como preferiu Davi, um ser" semelhante à vaidade, os seus dias são como a sombra que passa."
Por que o visita? Porque o humano é poeira e cinza, e vaidade, e sombra, mas também alma e sangue.
Por que Abraão? Porque ele entende isso, e aceita a sua existência como uma benção e se prostra, sempre, diante de seu Criador.
Por que Sodoma e Gomorra? Porque negavam ser o que eram, humanos. Queriam ser apenas poeira e cinza. Sombra. E nisto se tornaram.